Conversão de união estável
homossexual em casamento
Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito
Público
Setembro/2011
Em recente
decisão, na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e Ação
Direita de Inconstitucionalidade nº 4277, o Supremo Tribunal Federal fixou ao
artigo 1.723 do Código Civil[1]
interpretação conforme à Constituição Federal, para dele excluir qualquer
significado que impeça o reconhecimento da união contínua e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, atribuindo-lhe os mesmos direitos
e consequências de uma união estável heteroafetiva.
Com efeito,
os Senhores Ministros, à unanimidade, reconheceram inexistir vedação legal ao
reconhecimento das uniões homoafetivas com o fito de constituir família, dadas
as novas configurações dos núcleos familiares, privilegiando mais o afeto que os
aspectos estritamente legais.
O princípio
da dignidade da pessoa humana – conforme essa interpretação – obriga à não
discriminação, ao acolhimento das diferenças e da liberdade de orientação
sexual, ao tratamento igualitário entre as pessoas, sejam hetero ou
homossexuais.
Imbuídos de
tal entendimento, a Suprema Corte pacificou entendimento de que o
reconhecimento da união estável não está adstrita à convivência entre homem e
mulher, mas sim abarca as uniões baseadas no amor, no companheirismo, na
convivência diária das alegrias e tribulações.
Nesse
sentido, o Ministro Marco Aurélio expressou em seu voto:
“Com base nesses fundamentos,
concluo que é obrigação constitucional do Estado reconhecer a condição familiar
e atribuir efeitos jurídicos às uniões homoafetivas. Entendimento contrário
discrepa, a mais não poder, das garantias e direitos fundamentais, dá eco a
preconceitos ancestrais, amesquinha a personalidade do ser humano e, por fim,
desdenha o fenômeno social, como se a vida comum com intenção de formar família
entre pessoas de sexo igual não existisse ou fosse irrelevante para a
sociedade.”
(Trecho
do Voto do Min. Marco Aurélio no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).
Reconhecida,
pois, a união de companheiros do mesmo sexo como “família”, aplicando-se-lhe as
mesmas regras da união estável, paira a dúvida quando à extensão da conversão
dessa união em casamento.
Observo,
primeiramente, que o próprio Supremo Tribunal Federal deixou claro que a “família”, como ente nuclear da
sociedade, é conceito desvinculado das expressões “casamento”, “união estável”
ou “união homossexual”. Estas são
formas de constituição de entidade familiar, mas não as únicas.
A esse
respeito, embora ainda não publicado acórdão do julgamento mencionado,
extrai-se dos votos proferidos pelos Ministros o excertos abaixo:
“E assim é que,
mais uma vez, a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a
família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como
também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e
a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem
nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum
significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido
coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser.
Assim como dá para inferir que, quanto maior o
número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a
possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e
a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são
funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e
dos valores sociais do trabalho.”
(Trecho do Voto do Relator Min. Ayres Britto no
julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – grifos originais).
“Daí porque,
ao interpretar o art. 226 da Constituição, aquele autor [José Afonso da
Silva] assinala que ‘a entidade familiar fundada no casamento, portanto, não é mais a única
consagrada pelo direito constitucional e, por consequência, pela ordem jurídica
em geral; porque é da Constituição que irradiam os valores normativos que
imantam todo o ordenamento jurídico. Ex facto oritur jus – diz o velho brocado
latino. A realidade é a causadora de representações jurídicas que, até um certo
momento, permanecem à margem do ordenamento jurídico formal; mas a pressão dos
fatos acaba por gerar certo reconhecimento da sociedade, que vai aceitando
situações antes repudiadas, até o momento em que o legislador as disciplina,
exatamente para contê-las no campo do controle social. Quantos sofrimentos passaram
mães solteiras que, com seus filhos, eram marginalizadas pela sociedade e
desprezadas pelo Estado, porque essa comunidade não era concebida como entidade
familiar, porque o sistema constitucional só reconhecia a familia biparental?’ (Op. cit., p. 863).”
(Trecho
do Voto da Min. Carmen Lúcia no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – citando José Afonso da Silva, Comentário contextual à
Constituição. São
Paulo: Malheiros, 2010).
“Também
não vislumbro, no texto normativo
da Constituição, no que concerne ao reconhecimento da proteção do Estado
às uniões entre pessoas do mesmo sexo, a existência de lacuna voluntária
ou consciente (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”,
p. 143/145, item n. 7, 1989, UnB/Polis), de caráter axiológico, cuja
constatação, evidenciadora de um “silêncio eloquente”, poderia
comprometer a interpretação exposta neste voto, no sentido de que a
união estável homoafetiva qualifica-se, constitucionalmente, “como
entidade familiar” (CF, art. 226, § 3º).
(...)
Nessa
perspectiva, Senhor Presidente, entendo
que a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime
jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se
e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos
princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança
jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o
direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão
que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição
da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e
suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das
conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero
entidade familiar.
(...)
Também
o eminente Professor (e ilustre membro
do Ministério Público Federal) DANIEL SARMENTO (op. cit., p. 643) revela
igual percepção em torno dessa particular questão, reconhecendo, no
afeto, enquanto valor jurídico-constitucional, um elemento
fundamental (e preponderante) na esfera das relações do direito
de família, inclusive no âmbito das uniões entre pessoas do mesmo
sexo: “Enfim, se a nota essencial das entidades familiares
no novo paradigma introduzido pela Constituição de 88 é a valorização
do afeto, não há razão alguma para exclusão das parcerias
homossexuais, que podem caracterizar-se pela mesma comunhão e profundidade
de sentimentos presentes no casamento ou na união estável entre
pessoas de sexos opostos, não existindo, portanto, qualquer justificativa
legítima para a discriminação praticada contra os homossexuais.” (grifei)”
(Trechos do Voto do Min. Celso de Mello no
julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – grifos originais, com citação de SARMENTO, Daniel. Casamento e União Estável entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas
Constitucionais, “in” Igualdade, Diferença e Direitos Humanos,
2008, Lumen Juris).
“Na verdade, a partir de uma primeira
leitura do texto magno, é possível identificar, pelo menos, três tipos de família,
a saber: a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e,
ainda, a que se denomina monoparental.
(...)
Assim, segundo penso, não há como enquadrar
a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer
naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a
partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental.
Esta, relembro, como decorre de expressa disposição constitucional, corresponde
à que é formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
(...)
Como, então, enquadrar-se, juridicamente, o
convívio duradouro e ostensivo entre pessoas do mesmo sexo, fundado em laços
afetivos, que alguns – a meu ver, de forma apropriada - denominam de “relação
homoafetiva”?
(...)
Entendo que as uniões de pessoas do mesmo sexo
que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, na medida em que
constituem um dado da realidade fenomênica e, de resto, não são proibidas pelo
ordenamento jurídico, devem ser reconhecidas pelo Direito, pois, como já diziam
os jurisconsultos romanos, ex facto oritur jus. Creio que se está, repito, diante de outra entidade
familiar, distinta daquela que caracteriza as uniões estáveis heterossexuais.
(...)
Assim, muito embora o texto constitucional
tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas
de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública,
continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a
merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226,
quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios basilares do texto constitucional.
(...)
Em suma, reconhecida a união homoafetiva
como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais
próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em
que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre
pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta
o emprego da analogia no âmbito jurídico.
(Trechos do Voto do Min. Ricardo Lewandowski no
julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).
“Existe
razoável consenso na ideia de que não há hierarquia entre entidades. Portanto,
entre o casamento e a união estável heterossexual não existe, em princípio,
distinção ontológica; o tratamento legal distinto se dá apenas em virtude da
solenidade de que o ato jurídico do casamento – rectius, o matrimônio – se reveste, da qual decorre a segurança jurídica
absoluta para as relações dele resultantes, patrimoniais (como, v.g., o regime de bens ou os negócios jurídicos praticados com terceiros) e
extrapatrimoniais. A união estável, por seu turno, demandará, em muitos casos,
a produção de outras provas facilmente substituídas, num casamento, pela
respectiva certidão, mas, como entidades familiares, funcionarão
substancialmente do mesmo modo.
Pois
bem. O que distingue, do ponto de
vista ontológico, as uniões estáveis, heteroafetivas, das uniões homoafetivas? Será impossível que duas pessoas do mesmo sexo não tenham entre si
relação de afeto, suporte e assistência recíprocos? Que criem para si, em
comunhão, projetos de vida duradoura em comum? Que se identifiquem, para si e
para terceiros, como integrantes de uma célula única, inexoravelmente ligados?
A
resposta a essas questões é uma só: Nada
as distingue. Assim como companheiros
heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e
financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia-a-dia; projetam
um futuro comum.
Se,
ontologicamente, união estável (heterossexual) e união (estável) homoafetiva
são simétricas, não se pode considerar apenas a primeira como entidade
familiar. Impõe-se, ao revés, entender que a
união homoafetiva também se inclui no conceito constitucionalmente adequado de
família, merecendo a mesma proteção do Estado de Direito que a união entre
pessoas de sexos opostos.”
(Trecho do Voto do Min. Luiz Fux no julgamento da
ADI 4277/DF, STF, 2011).
“Revela-se,
então, a modificação paradigmática no direito de família. Este passa a ser o
direito “das famílias”, isto é, das famílias plurais, e não somente da família
matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se
o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização
da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa
de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os
respectivos membros possam ter uma vida plena comum.
Abandonou-se
o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”, para identificar
nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe, como
defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito de família e o
novo Código Civil, p. 93, citado por Maria Berenice
Dias, Manual de direito das famílias, 2010,
p. 43).”
(Trecho do Voto do Min. Marco Aurélio no julgamento
da ADI 4277/DF, STF, 2011).
Vê-se, obter dictum, que o entendimento unânime
dos eminentes Ministros do Supremo foi pelo acolhimento e reconhecimento das uniões
homossexuais como verdadeira “família” e merecedora da proteção do Estado, não
se estendendo – já que extraneos ao
julgamento – à possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Fica nítida
a lição de que o casamento é instituto destinado a constituir família, mas não
o único. Família ou entidade familiar é ente social
reconhecido no casamento, na união estável hetero ou homossexual, nos agregados
monoparentais (um dos pais e seus descendentes), ou anaparentais (grupo de
irmãos, sem os pais), ou socioafetivos. Até mesmo um único indivíduo poderá ser
considerado família[2].
Daí, pois,
partir-se do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo – com
os mesmos direitos e garantias inerentes às uniões hetorossexuais –, para a
conversão em casamento, é alargar em demasia, ao menos por ora, a interpretação
assentada pelo Supremo Tribunal Federal que, no limite do julgado, apenas
atribuiu status de entidade familiar
a tais uniões.
Reflito
“por ora”, pois caberá ao legislador providenciar as alterações constitucionais
e infraconstitucionais para reconhecer de uma vez por todas uma situação fática
corrente, coadunando-se com a dinâmica da sociedade, possibilitando que os
indivíduos, na sua liberdade sexual e afetiva, optem pela formalização legal da
convivência pelo instituto do matrimônio.
Verifico,
portanto, o patente direito dos requerentes ao reconhecimento de sua
convivência estável, pública e duraroura, até mesmo com reconhecimento ex tunc da constituição de verdadeira
família, disso advindo as decorrências legais e os reflexos patrimoniais e
sucessórios intrínsecos.
Entretanto,
pelos fundamentos acima expostos e por falta de previsão legal, descabe, ainda
por ora, a conversão da união estável homossexual em casamento.
[1] Código Civil, artigo 1.723
– “É reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
[2] A respeito da
impenhorabilidade do bem de família, o Superior Tribunal de Justiça vem
entendendo que mesmo o imóvel de pessoa solteira é bem de família, pois, se a
lei protege um grupo de pessoas, também deve proteger a pessoa que vive o mais triste dos sentimentos que é a solidão.
(STJ, Recurso Especial nº 450989/RJ, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros,
J. 13/04/2004).