terça-feira, 20 de setembro de 2011

Conversão de união estável homossexual em casamento


Conversão de união estável homossexual em casamento

Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito Público
Setembro/2011

Em recente decisão, na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4277, o Supremo Tribunal Federal fixou ao artigo 1.723 do Código Civil[1] interpretação conforme à Constituição Federal, para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, atribuindo-lhe os mesmos direitos e consequências de uma união estável heteroafetiva.

Com efeito, os Senhores Ministros, à unanimidade, reconheceram inexistir vedação legal ao reconhecimento das uniões homoafetivas com o fito de constituir família, dadas as novas configurações dos núcleos familiares, privilegiando mais o afeto que os aspectos estritamente legais.

O princípio da dignidade da pessoa humana – conforme essa interpretação – obriga à não discriminação, ao acolhimento das diferenças e da liberdade de orientação sexual, ao tratamento igualitário entre as pessoas, sejam hetero ou homossexuais.

Imbuídos de tal entendimento, a Suprema Corte pacificou entendimento de que o reconhecimento da união estável não está adstrita à convivência entre homem e mulher, mas sim abarca as uniões baseadas no amor, no companheirismo, na convivência diária das alegrias e tribulações.

Nesse sentido, o Ministro Marco Aurélio expressou em seu voto:

“Com base nesses fundamentos, concluo que é obrigação constitucional do Estado reconhecer a condição familiar e atribuir efeitos jurídicos às uniões homoafetivas. Entendimento contrário discrepa, a mais não poder, das garantias e direitos fundamentais, dá eco a preconceitos ancestrais, amesquinha a personalidade do ser humano e, por fim, desdenha o fenômeno social, como se a vida comum com intenção de formar família entre pessoas de sexo igual não existisse ou fosse irrelevante para a sociedade.”
(Trecho do Voto do Min. Marco Aurélio no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

Reconhecida, pois, a união de companheiros do mesmo sexo como “família”, aplicando-se-lhe as mesmas regras da união estável, paira a dúvida quando à extensão da conversão dessa união em casamento.

Observo, primeiramente, que o próprio Supremo Tribunal Federal deixou claro que a “família”, como ente nuclear da sociedade, é conceito desvinculado das expressõescasamento”, “união estável” ou “união homossexual”. Estas são formas de constituição de entidade familiar, mas não as únicas.

A esse respeito, embora ainda não publicado acórdão do julgamento mencionado, extrai-se dos votos proferidos pelos Ministros o excertos abaixo:

“E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho.”
(Trecho do Voto do Relator Min. Ayres Britto no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – grifos originais).

Daí porque, ao interpretar o art. 226 da Constituição, aquele autor [José Afonso da Silva] assinala que ‘a entidade familiar fundada no casamento, portanto, não é mais a única consagrada pelo direito constitucional e, por consequência, pela ordem jurídica em geral; porque é da Constituição que irradiam os valores normativos que imantam todo o ordenamento jurídico. Ex facto oritur jus – diz o velho brocado latino. A realidade é a causadora de representações jurídicas que, até um certo momento, permanecem à margem do ordenamento jurídico formal; mas a pressão dos fatos acaba por gerar certo reconhecimento da sociedade, que vai aceitando situações antes repudiadas, até o momento em que o legislador as disciplina, exatamente para contê-las no campo do controle social. Quantos sofrimentos passaram mães solteiras que, com seus filhos, eram marginalizadas pela sociedade e desprezadas pelo Estado, porque essa comunidade não era concebida como entidade familiar, porque o sistema constitucional só reconhecia a familia biparental?’ (Op. cit., p. 863).”
(Trecho do Voto da Min. Carmen Lúcia no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – citando José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2010).

“Também não vislumbro, no texto normativo da Constituição, no que concerne ao reconhecimento da proteção do Estado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, a existência de lacuna voluntária ou consciente (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 143/145, item n. 7, 1989, UnB/Polis), de caráter axiológico, cuja constatação, evidenciadora de um “silêncio eloquente”, poderia comprometer a interpretação exposta neste voto, no sentido de que a união estável homoafetiva qualifica-se, constitucionalmente, “como entidade familiar” (CF, art. 226, § 3º).
(...)
Nessa perspectiva, Senhor Presidente, entendo que a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar.
(...)
Também o eminente Professor (e ilustre membro do Ministério Público Federal) DANIEL SARMENTO (op. cit., p. 643) revela igual percepção em torno dessa particular questão, reconhecendo, no afeto, enquanto valor jurídico-constitucional, um elemento fundamental (e preponderante) na esfera das relações do direito de família, inclusive no âmbito das uniões entre pessoas do mesmo sexo: “Enfim, se a nota essencial das entidades familiares no novo paradigma introduzido pela Constituição de 88 é a valorização do afeto, não há razão alguma para exclusão das parcerias homossexuais, que podem caracterizar-se pela mesma comunhão e profundidade de sentimentos presentes no casamento ou na união estável entre pessoas de sexos opostos, não existindo, portanto, qualquer justificativa legítima para a discriminação praticada contra os homossexuais.” (grifei)”
(Trechos do Voto do Min. Celso de Mello no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – grifos originais, com citação de SARMENTO, Daniel. Casamento e União Estável entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais, “in” Igualdade, Diferença e Direitos Humanos, 2008, Lumen Juris).

“Na verdade, a partir de uma primeira leitura do texto magno, é possível identificar, pelo menos, três tipos de família, a saber: a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e, ainda, a que se denomina monoparental.
(...)
Assim, segundo penso, não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental. Esta, relembro, como decorre de expressa disposição constitucional, corresponde à que é formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
(...)
Como, então, enquadrar-se, juridicamente, o convívio duradouro e ostensivo entre pessoas do mesmo sexo, fundado em laços afetivos, que alguns – a meu ver, de forma apropriada - denominam de “relação homoafetiva”?
(...)
Entendo que as uniões de pessoas do mesmo sexo que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, na medida em que constituem um dado da realidade fenomênica e, de resto, não são proibidas pelo ordenamento jurídico, devem ser reconhecidas pelo Direito, pois, como já diziam os jurisconsultos romanos, ex facto oritur jus. Creio que se está, repito, diante de outra entidade familiar, distinta daquela que caracteriza as uniões estáveis heterossexuais.
(...)
Assim, muito embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226, quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios basilares do texto constitucional.
(...)
Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico.
(Trechos do Voto do Min. Ricardo Lewandowski no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

“Existe razoável consenso na ideia de que não há hierarquia entre entidades. Portanto, entre o casamento e a união estável heterossexual não existe, em princípio, distinção ontológica; o tratamento legal distinto se dá apenas em virtude da solenidade de que o ato jurídico do casamento – rectius, o matrimônio – se reveste, da qual decorre a segurança jurídica absoluta para as relações dele resultantes, patrimoniais (como, v.g., o regime de bens ou os negócios jurídicos praticados com terceiros) e extrapatrimoniais. A união estável, por seu turno, demandará, em muitos casos, a produção de outras provas facilmente substituídas, num casamento, pela respectiva certidão, mas, como entidades familiares, funcionarão substancialmente do mesmo modo.
Pois bem. O que distingue, do ponto de vista ontológico, as uniões estáveis, heteroafetivas, das uniões homoafetivas? Será impossível que duas pessoas do mesmo sexo não tenham entre si relação de afeto, suporte e assistência recíprocos? Que criem para si, em comunhão, projetos de vida duradoura em comum? Que se identifiquem, para si e para terceiros, como integrantes de uma célula única, inexoravelmente ligados?
A resposta a essas questões é uma só: Nada as distingue. Assim como companheiros heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia-a-dia; projetam um futuro comum.
Se, ontologicamente, união estável (heterossexual) e união (estável) homoafetiva são simétricas, não se pode considerar apenas a primeira como entidade familiar. Impõe-se, ao revés, entender que a união homoafetiva também se inclui no conceito constitucionalmente adequado de família, merecendo a mesma proteção do Estado de Direito que a união entre pessoas de sexos opostos.”
(Trecho do Voto do Min. Luiz Fux no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

“Revela-se, então, a modificação paradigmática no direito de família. Este passa a ser o direito “das famílias”, isto é, das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum.
Abandonou-se o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”, para identificar nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe, como defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito de família e o novo Código Civil, p. 93, citado por Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, 2010, p. 43).”
(Trecho do Voto do Min. Marco Aurélio no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

Vê-se, obter dictum, que o entendimento unânime dos eminentes Ministros do Supremo foi pelo acolhimento e reconhecimento das uniões homossexuais como verdadeira “família” e merecedora da proteção do Estado, não se estendendo – já que extraneos ao julgamento – à possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Fica nítida a lição de que o casamento é instituto destinado a constituir família, mas não o único. Família ou entidade familiar é ente social reconhecido no casamento, na união estável hetero ou homossexual, nos agregados monoparentais (um dos pais e seus descendentes), ou anaparentais (grupo de irmãos, sem os pais), ou socioafetivos. Até mesmo um único indivíduo poderá ser considerado família[2].

Daí, pois, partir-se do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo – com os mesmos direitos e garantias inerentes às uniões hetorossexuais –, para a conversão em casamento, é alargar em demasia, ao menos por ora, a interpretação assentada pelo Supremo Tribunal Federal que, no limite do julgado, apenas atribuiu status de entidade familiar a tais uniões.

Reflito “por ora”, pois caberá ao legislador providenciar as alterações constitucionais e infraconstitucionais para reconhecer de uma vez por todas uma situação fática corrente, coadunando-se com a dinâmica da sociedade, possibilitando que os indivíduos, na sua liberdade sexual e afetiva, optem pela formalização legal da convivência pelo instituto do matrimônio.

Verifico, portanto, o patente direito dos requerentes ao reconhecimento de sua convivência estável, pública e duraroura, até mesmo com reconhecimento ex tunc da constituição de verdadeira família, disso advindo as decorrências legais e os reflexos patrimoniais e sucessórios intrínsecos.

Entretanto, pelos fundamentos acima expostos e por falta de previsão legal, descabe, ainda por ora, a conversão da união estável homossexual em casamento.



[1] Código Civil, artigo 1.723 – “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
[2] A respeito da impenhorabilidade do bem de família, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que mesmo o imóvel de pessoa solteira é bem de família, pois, se a lei protege um grupo de pessoas, também deve proteger a pessoa que vive o mais triste dos sentimentos que é a solidão. (STJ, Recurso Especial nº 450989/RJ, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, J. 13/04/2004).

Reflexões acerca do princípio da insignificância e da Teoria Constitucionalista do Delito, diante das condutas delitivas reiteradas


Reflexões acerca do princípio da insignificância e da Teoria Constitucionalista do Delito, diante das condutas delitivas reiteradas

Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito Público
Agosto/2011


Manifestação em processo crime no qual o acusado foi denunciado por furto de duas caixas de bombom avaliadas em R$30,00. Agente multireincidente em crimes da mesma natureza. Aplicação ou não do princípio da insignificância.



TS foi denunciado pela prática de um crime de furto tentado, tipificado no artigo 155, “caput”, c.c. artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, porquanto consta que no dia XX, no estabelecimento comercial denominado XX, nesta cidade, tentou subtrair para si duas caixas de chocolate avaliadas em trinta reais.

O Juízo, analisando os pressupostos de admissibilidade da peça acusatória, entendeu ausente justa causa para a ação penal, aplicando o princípio da insignificância para rejeitar a denúncia com fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.


1. Do Princípio da Insignificância

Segundo narrado na denúncia, na data dos fatos o recorrido, no interior do supermercado, pegou duas caixas de chocolates marca “YY” (auto de exibição, apreensão e entrega de fls.), avaliadas em R$30,00 (trinta reais), e as escondeu sob as vestes, deixando o estabelecimento comercial sem passar pelos caixas.

Funcionários do supermercado, suspeitando da atitude do recorrido, começaram a segui-lo, momento em que ele saiu correndo e foi detido apenas na rua.

A conduta descrita amolda-se perfeitamente ao tipo penal imputado, qual seja, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (art. 155 CP).

Não se descura do princípio da insignificância e seus pressupostos, assentes em larga escala na jurisprudência – mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica –, todavia, no presente caso não se os tem presentes, senão vejamos:


2. Da ofensividade da conduta do agente

Neste aspecto, a moderna doutrina da Teoria Constitucionalista do Delito desmembra a tipicidade penal nos aspectos formal ou objetivo, subjetivo e normativo ou material, aos quais a conduta do agente, no caso em testilha, se subsume perfeitamente.

Quanto ao aspecto formal ou objetivo, conforme relatado alhures, a ação se amolda perfeitamente ao tipo penal descrito no artigo 155, “caput”, do Código Penal, porquanto o agente praticou o núcleo do tipo, estando caracterizados todos os demais elementos, pois presente prova da materialidade.

Com relação ao aspecto subjetivo da tipicidade – caráter psicológico do agente – vê-se também presente, já que, ao passar pelos caixas do supermercado sem pagar a mercadoria, nitidamente o agente tinha o dolo de apoderar-se ilicitamente da coisa alheia.

Nesse aspecto, nem há se apurar o valor da coisa em si, pois o viés psicológico do agente, seja a coisa de pequeno ou de grande valor, dirigiu-se ao fim determinado de ter o objeto para si, ilicitamente.

No tocante ao terceiro aspecto, da tipicidade normativa ou material, ou seja, a lesão ao bem jurídico, em que pese a consideração do pequeno valor da coisa furtada diante do vultoso poder econômico do estabelecimento comercial, fato concreto é que, se não tivesse se restringido à tentativa, arcaria o comércio com o prejuízo.

Nessa toada, admitir-se diariamente pequenos furtos, individualmente de pequeno valor, resultaria, cumulativamente, lesão considerável não só ao estabelecimento vítima, mas aos próprios consumidores, para os quais os custos desses “crimes insignificantes” seriam inevitavelmente repassados.

Aqui cabe revelar, embora tais circunstâncias devam ser melhor confrontadas durante a instrução criminal, que o recorrido é frequentador assíduo do Judiciário, conforme atesta sua longa ficha criminal (fls. ...), processado por inúmeros delitos contra o patrimônio, já tendo cumprido pena, a qual, por sinal, não foi suficiente para tolher seu comportamento antissocial.

Dessa feita, considerados integralmente preenchidos os aspectos da tipicidade (formal, subjetivo e material), não se pode falar em inexistência ou pequena ofensividade da conduta.


3. Da periculosidade social da ação

Outro vetor de relevância para a caracterização do princípio da insignificância é a ausência de periculosidade social da ação.

Ora, de se perguntar se a sociedade atual, vítima diuturna dos mais variados crimes, grandes ou pequenos, tolera a conduta atribuída ao recorrido.

Cremos que não. Entendimento contrário seria esvaziar a finalidade de pacificação social do Direito e admitir que o “jeitinho” faz parte da regra vigente e que exceção são as pessoas de bem; ou então que o preceito “levar vantagem em tudo”, sobrepondo-se irrestritamente aos padrões éticos, ganhou status axiológico de maior importância.

Talvez até mesmo os defensores do princípio da insignificância devessem rever os conceitos que atribuem a essa hipótese, tendo-o como excludente supralegal de tipicidade.

Temeroso parece-nos esse fio condutor da tendência moderna que, no lugar de penalizar o agente infrator desses pequenos delitos, ainda que com sanções alternativas, ressocializadoras, simplesmente consideram a conduta atípica, irrelevante para o Direito Penal, como se outros ramos do direito pudessem reverter a infeliz e indesejável, porém visível, degradação social.

Exemplo de boa aplicação do princípio da insignificância seria, em hipótese, a do disposto no artigo 155, § 2º, do Código Penal, que trata do crime de bagatela, e não simplesmente desconsiderar e relevar a conduta ilícita.

E mais: a periculosidade da ação fica mais evidente diante do sentimento de impunidade gerado por decisões como as que ora atacamos, pois ao mesmo em que impinge nos cidadãos de bem a decepção com a ação do poder público, gera na criminalidade a pretensão de se sobrepor do próprio Estado.

Por tais fundamentos, entende-se nitidamente presente a periculosidade social da ação, tanto pelos seus reflexos diretos, quanto por aqueles mais distantes, embora não visíveis de imediato, mas que sobrelevam à noção de desmantelamento social e a sensação de aumento da criminalidade em geral.


4. Do grau de reprovabilidade do comportamento

Mais uma característica que se pretende atribuir – o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento – tem imbricação com o tópico acima.

Se se considerar a conduta delituosa ora denunciada como perigosa (nos termos do item supra, em seus aspectos imediatos e mediatos), de certo que essa mesma conduta deva ser reprovável.

Mais uma vez é necessário indagar-se: é tolerável a subtração de bens? Haveríamos de considerar que a maior parte da sociedade aceita a prática de pequenos furtos? Ou se estará diante, talvez, não de uma tolerância e aprovação, mas sim perante um descrédito do Estado, que não tem força para coibir esse tipo de crime?

Tal é a premissa que tomamos para não aceitar o argumento da reduzida reprovabilidade da conduta. Esse sentimento de “tolerância” com o chamado “crime de bagatela”, além de decorrer do já citado sentimento de impunidade, decorre da falta de conscientização da sociedade de que é ela a maior prejudicada, a principal vítima, pois terá de arcar, inevitavelmente, com o custo social desses delitos, por menores que sejam, mas que se avolumam imensamente, embora imperceptíveis.

Isso apenas corrobora a chamada “cifra negra”, aquela imensa parcela de crimes que sequer chega ao conhecimento do Judiciário, passando impune.

Repise-se: não se descura da possibilidade de reconhecimento da existência de crimes de menor relevância, os quais, porém, não podem deixar de ser cabalmente investigados e punidos, todavia não com rigores extremos, mas com alternativas adequadas.

Considerar um baixo nível de reprovação social não deve ser sinônimo de impunidade, mas de resposta adequada à conduta ilícita.


5. Da expressividade da lesão jurídica

O último aspecto relevante se confunde com os demais e os permeia: a expressividade ou não da lesão jurídica.

Caso a lesão jurídica não fosse expressiva, de que adiantaria o legislador incriminar tais condutas? Por certo, o ponto central, mais uma vez, não está no fato de não se punir (no presente caso, sequer iniciar-se a persecução penal), mas de se punir adequadamente, proporcionalmente.

Com efeito, o recorrido é contumaz furtador, conforme consta de sua extensa folha de antecedentes, já tendo sido condenado diversas vezes, se mostrando, pois, insuficientes as sanções anteriormente aplicadas.

E não é só. Se a lesão jurídica, embora de pequena monta, for considerada completamente inexpressiva, estará o Estado, na prática, “premiando” o recorrido, como um “incentivo” à prática de novas condutas.

Razão, há, portanto, para se considerar expressiva a lesão jurídica, não apenas a conduta de subtrair, em si mesma, mas também pela afronta ao ordenamento jurídico, tratando-se de reiterada conduta ilícita.


6. Do denominado “Furto Famélico”

Superada a tese da insignificância – como já dito, que não deve servir de pressuposto para o recebimento ou rejeição da denúncia, mas sim para eventual dosimetria da pena, em caso de condenação – outra tese sustentada na decisão ora atacada é do “furto famélico”.

É certo que situações excepcionalíssimas resultariam na comprovação de que a subtração de alimento, por pessoa em condição de miserabilidade, vise à satisfação de privação inadiável, da qual padece o agente ou sua família.

Todavia, não se vislumbra tal situação extrema no presente caso.

Isso porque o recorrido teria de apoderado de duas caixas de chocolate de marca reconhecidamente mais cara – duas caixas de bombons “YY” –, sendo que, caso necessitasse “matar a fome”, seria mais “lógico” ter subtraído qualquer outro gênero alimentício mais propício a saciar sua necessidade.

Aliado a essa circunstância, pesa desfavoravelmente os péssimos antecedentes do recorrido, como já mencionado, contumaz furtador.

Além disso, a hipótese de furto famélico cabe à defesa demonstrar, durante regular instrução processual, o estado de necessidade ou miserabilidade do agente.

Por tais razões, entende-se que, neste momento processual, descabe a tese do furto famélico como fundamentação para rejeição da denúncia.


7. Conclusão

Ante o exposto, pelas razões acima expostas e tendo por norte que nesta fase inicial da persecução penal vige o princípio do “in dúbio pro societate”, sendo mister a regular instrução criminal para, só então, diante das provas judiciais colhidas, aplicar-se ou não uma reprimenda penal.


Breves comentários ao artigo 81 da Lei nº 9.504/1997


Breves comentários ao artigo 81 da Lei nº 9.504/1997.
Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito Público
Agosto/2011


Art. 81. As doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou coligações.
§ 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.
§ 2º A doação de quantia acima do limite fixado neste artigo sujeita a pessoa jurídica ao pagamento de multa no valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso.
§ 3º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, a pessoa jurídica que ultrapassar o limite fixado no § 1º estará sujeita à proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos, por determinação da Justiça Eleitoral, em processo no qual seja assegurada ampla defesa.
§ 4º  As representações propostas objetivando a aplicação das sanções previstas nos §§ 2º e 3º observarão o rito previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, e o prazo de recurso contra as decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial.


O artigo em comento trata das doações eleitorais por pessoas jurídicas limitadas a 2% do faturamento bruto auferido no ano anterior à eleição.
Um primeiro aspecto a ser analisado é o da prescrição – prazo para oferecimento de representação eleitoral.
Chegou-se a sustentar que o prazo prescricional seria de 15 dias, tese esta que não prosperou perante o Tribunal Superior Eleitoral, que assentou o prazo de 180 dias, contados da diplomação, para propositura de representação por descumprimento, por pessoa física ou jurídica, dos limites legais de doação para campanhas eleitorais, conforme julgado abaixo:

“RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. DOAÇÃO DE CAMPANHA ACIMA DO LIMITE LEGAL. REPRESENTAÇÃO. AJUIZAMENTO. PRAZO. 180 DIAS. ART. 32 DA LEI Nº 9.504/97. INTEMPESTIVIDADE. RECURSO DESPROVIDO. - O prazo para a propositura, contra os doadores, das representações fundadas em doações de campanha acima dos limites legais é de 180 dias, período em que devem os candidatos e partidos conservar a documentação concernente às suas contas, a teor do que dispõe o art. 32 da Lei nº 9.504/97. - Uma vez não observado o prazo de ajuizamento referido, é de se reconhecer a intempestividade da representação. - Recurso desprovido.” (TSE, RESPE n° 36.552 (43873-32.2009.6.00.0000), Relator originário: Ministro Felix Fischer; Redator para o acórdão: Ministro Marcelo Ribeiro, J. 06.05.2010).

Outro tema que gera certa polêmica diz respeito à eventual violação de sigilo fiscal. Neste ponto, há que se observar a sempre necessária autorização judicial, mediante procedimento específico.
No caso, há que se ponderar entre a lisura do financiamento das campanhas eleitorais – preceito de ordem pública e de extremo interesse social – e o direito ao sigilo, o qual não é absoluto.
Será, assim, totalmente descabida qualquer alegação a respeito de eventual ilicitude de prova, apesar de não produzida diante do contraditório imediato, já que lastreada no devido e necessário provimento judicial, possibilitará à defesa do representado manifestar-se em contraditório diferido, contestando as informações obtidas e que embasarem alguma representação.
Finalmente, o aspecto crucial da norma é o limite estabelecido para as doações.
Ora, o § 1º do artigo 81 da Lei das Eleições é claro quanto a esse limite máximo de doações das pessoas jurídicas para campanhas eleitorais:
“§ 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.” (grifo nosso)

Quanto às penalidades, dispõe o artigo 81, §§ 2º e 3º, da Lei nº 9.504/1997:
“§ 2º A doação de quantia acima do limite fixado neste artigo sujeita a pessoa jurídica ao pagamento de multa no valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso.”
“§ 3º Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, a pessoa jurídica que ultrapassar o limite fixado no § 1º estará sujeita à proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos, por determinação da Justiça Eleitoral, em processo no qual seja assegurada ampla defesa.” (grifos nossos)

Afigurando-se nítida a discrepância entre os valores apresentados na prestação de contas e o limite, com base no faturamento bruto, há que se fazer incidir a sanção pertinente.
A contrário senso, a mínima diferença seria passível de aplicação do princípio da insignificância.
Todavia, a diferença apurada deve ser considerada em face do percentual do faturamento, não do valor monetário em si. Existindo excesso, há que se considerar a capacidade do doador, não o valor intrinsecamente. Caso contrário, o legislador não teria fixado o limite percentualmente, mas monetariamente.
Superada a valoração do excesso de doação, há que se considerar, na aplicação da multa, as circunstâncias e reflexos da irregularidade, bem como o montante da doação, na fixação entre as margens de cinco a dez vezes o valor excedido.
Demonstrando-se potencialmente lesivo à continuidade da pessoa jurídica, precipuamente quando se tratar de micro ou pequena empresa, será prudente avaliar-se a capacidade financeira de arcar com essa multa.
De outro lado, mais uma vez o que deve ser levado em conta é correlação da multa com o faturamento bruto da empresa, não o valor intrínseco da multa.
Entendimento diverso, para eventual “anistia” atrelada ao porte da empresa, seria desconsiderar o ordenamento eleitoral, abrindo brechas para pequenas irregularidades, que, somadas, teriam potencial para desequilibrar as disputas eleitorais, em claro abuso do poder econômico.
Quanto à penalidade prevista no §3º do artigo 81 da Lei de Eleições – proibição de contratar e licitar com o poder público –, nesta hipótese sim, observando-se o princípio da proporcionalidade, poderá ser dispensada em certos casos.
Isto porque, diferentemente da multa, que deve ter por pressupostos para sua fixação o excesso da doação, calculado percentualmente sobre o faturamento do doador, a proibição de participar de licitações e de contratar com o poder público tem que levar em conta também a capacidade financeira da pessoa jurídica doadora, aferindo-se eventual potencial de lesividade seu poder econômico para desequilibrar a disputa eleitoral.
Se no caso concreto a pessoa jurídica doadora demonstrar faturamento de pouco mais de sessenta mil reais anuais, por exemplo, não se vislumbra potencial para desequilibrar a disputa eleitoral a ponto de ensejar a aplicação da sanção aqui tratada.
Tal entendimento coaduna-se com a jurisprudência:
“REPRESENTAÇÃO ELEITORAL. PRELIMINARES. INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL. COMPETÊNCIA DO CORREGEDOR REGIONAL ELEITORAL. CARÊNCIA DA AÇÃO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. COISA JULGADA. TISNA AO PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE. MÉRITO. DOAÇÕES DE CAMPANHA. PESSOA JURÍDICA. EXCESSO. ART. 81 DA LEI N.º 9.504/1997. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. ÔNUS PROBATÓRIO DA DEFESA. FATOS IMPEDITIVOS, MODIFICATIVOS E EXTINTIVOS DO DIREITO VINDICADO PELA PARTE AUTORA. PENALIDADE PECUNIÁRIA. ARBITRAMENTO. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. AUSÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES. VALOR ARBITRADO NO GRAU MÍNIMO. PENALIDADE DO §3º DO ARTIGO 81 DA LEI 9.504/97. NÃO APLICAÇÃO. PROPORCIONALIDADE. EXCESSO NÃO RELEVANTE FRENTE À DOAÇÃO. REJEIÇÃO DAS PRELIMINARES. PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO. (...) 9. As doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou coligações, ficando limitadas a 2% (dois por cento) do faturamento bruto auferido no ano anterior à eleição. 10. A doação de quantia acima do limite fixado sujeita a pessoa jurídica às seguintes sanções: (a) pagamento de multa no valor de 5 (cinco) a 10 (dez) vezes a quantia em excesso; (b) proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de 5 (cinco) anos. Inteligência do art. 81 da Lei n.º 9.504/1997. (...) 14. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem ser observados quando da cominação da sanção, porém, cabendo destacar que o arbitramento da penalidade deve atentar para sua dupla função preventivo-repressiva. 15. A penalidade pecuniária, diante da ausência de circunstâncias que justifiquem sua majoração, deve ser arbitrada em seu grau mínimo. 16. A penalidade consistente na proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos, descrita no §3º do artigo 81 da Lei 9.504/97, somente deve ser aplicada se, ao se aplicar a proporcionalidade em relação ao excesso na doação frente ao limite de doação e ao faturamento bruto da pessoa jurídica, constatar-se ser o excesso relevante, o que não se demonstrou nos autos.” (TRE-SE, Representação nº 882, Aracaju/SE, Acórdão nº 423/2009, Relator Des. Arthur Napoleão Teixeira Filho, Relator designado Des. Álvaro Joaquim Fraga, J. 24/11/2009 – com grifos nossos).

“REPRESENTAÇÃO. Doação em dinheiro a campanha eleitoral de candidato. Pessoa jurídica que informou ao Fisco não ter auferido rendimentos no ano anterior à eleição. Violação à regra prevista no artigo 81, § 1º da Lei 9.504/97. (...) 3. Descabimento da sanção pertinente à proibição de participar de licitações públicas e celebrar contratos com o Poder Público. Princípio da proporcionalidade. 4. Pedido julgado parcialmente procedente, com a aplicação de multa de cinco vezes o valor ultrapassado, assim considerada a totalidade da doação, de acordo com o artigo 81, § 2º, da Lei das Eleições.” (TRE-RJ, Representação nº 985 - Rio de janeiro/RJ, Acórdão nº 38.696, Relator Des. Leonardo Pietro Antonelli, J. 15/04/2010 – com grifos nossos)

“REPRESENTAÇÃO. PESSOA JURÍDICA. DOAÇÃO. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE MPE AFASTADA (Res. TSE 22.142/06). Precedentes (Rep. 1005, Rel. Mello Serra). MÉRITO. DOAÇÃO. SUPERIOR. LIMITE. 2% FATURAMENTO BRUTO. ANO ANTERIOR À ELEIÇÃO. 1- Doação de pessoa jurídica à campanha eleitoral de candidato. 2- Valor doado superior ao limite de 2% do faturamento bruto no ano anterior à eleição. 3- Pelo princípio da proporcionalidade descabe a sanção pertinente à proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o poder público pelo período de cinco anos. 4- Pedido parcialmente procedente com a aplicação de multa de 5 (cinco) vezes o valor ultrapassado, na forma do artigo 81, §2º da Lei 9.504/97.” (TRE-RJ, Representação nº 1028 - Rio de janeiro/RJ, Acórdão nº 38.304, Relator Des.  Leonardo Pietro Antonelli, J. 14/12/2009 – com grifos nossos)

Por fim, apenas para arrematar, cumpre destacar que, no trâmite processual, devem ser observadas as normas do artigo 22, da Lei Complementar nº 64/1990.


Da detração penal em pena de multa


Da detração penal em pena de multa

Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito Público
Agosto/2011


Parecer exarado em processo crime no qual o acusado foi sentenciado e condenado às penas privativas de liberdade e multa, tendo permanecido preso durante a instrução, prazo este que superou à pena de prisão imposta.

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O réu JW foi condenado, pela prática do crime descrito no artigo 147 do Código Penal, na forma do artigo 5º da Lei nº 11.340/2003, à pena de um mês e quinze dias de detenção, além de quinze dias-multa.

A sentença transitou em julgado em xxx.

Conforme certificado a fls. 108, o acusado, inicialmente preso em flagrante, até a concessão da liberdade provisória permaneceu recolhido durante dois meses e quinze dias.

Dessa forma, de se considerar que efetivamente já cumpriu integralmente a pena privativa de liberdade, considerando-se a detração penal nos termos do artigo 42 do Código Penal.

Pende, todavia, a pena pecuniária também aplicada, sobre a qual a possibilidade de detração – doutrinariamente denominada “detração analógica” – gera polêmicas há tempos, sem pacificação jurisprudencial.

Argumentos fortes no sentido da impossibilidade estão presentes, por exemplo, no julgado abaixo da 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Extinção de pena de multa - Detracão analógica - Impossibilidade. Extinção da pena de multa. Aplicação analógica do instituto da detracão, previsto no art 42, do Código Penal. Impossibilidade. Multa que, apesar da sua natureza penal, é divida de valor (art. 51, do CP), passível apenas de execução, vedada a conversão em privação da liberdade. Recurso ministerial provido para cassar a decisão que julgou extinta a pena de multa.” (TJSP, RESE n° 0433592-24.2010.8.26.0000/SP, Rel. Des. WILSON BARREIRA, J. 03.02.2011)


Entendimento contrário, mas igualmente robusto na fundamentação, adota a 16ª Câmara do mesmo Tribunal, conforme colacionado a seguir:

“Detração analógica. Pena de multa detraída de tempo de prisão cautelar. Possibilidade. Analogia autorizada pela lógica do razoável e pela detração especial prevista no art. 8.° do Código Penal. Recurso não provido.” (TJSP, Agravo em Execução n° 990.08.023732-2/SP, Rel. Des. Galvão Bruno, J. 30.09.2008)


Desse acórdão, trecho relevante conduz à reflexão:

“Nenhum deles [argumentos da tese contrária] é bastante a elidir as consequências injustas (e às vezes ridículas) que decorreriam da impossibilidade da detração realizada na r. sentença. Por exemplo: duas pessoas, em coautoria, praticam um crime; presas em flagrante, ficam presas por três meses, e a três meses de prisão são condenadas. Um deles, multi-reinciderte, não faz jus a beneficio algum; o outro, primario e sem antecedentes, tem a pena privativa de liberdade convertida em multa. Resultado, segundo a tese recursal: o muiti-reincidente está quite com a sociedade; o primário e sem antecedentes tem multa a pagar... O que significaria, também, é claro, que o segundo condenado tem interesse processual em recorrer para agravar sua pena...”


Portanto, é preciso uma interpretação constitucional do Código Penal, sob o viés dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

No presente caso, com a detração da prisão preventiva incidindo sobre a efetiva pena privativa de liberdade, restariam ao acusado ainda um mês em que permaneceu encarcerado, período este que, evidentemente, não pode constituir “crédito” contra o Estado e, pela primeira corrente, também não poderia ser abatido da pena pecuniária.

Ora, é de se argumentar: qual o valor da liberdade do indivíduo? Haveria um meio de se restaurar os trinta dias em que ficou detido?

Por certo, sem adentrar na questão da reprovação da conduta do acusado, o qual já foi ponderado pelo Juízo, entendendo pela justa dosimetria da pena, a adoção da segunda corrente, que autoriza a detração da pena pecuniária, apresenta-se a mais razoável, na medida em que, tendo permanecido mais tempo do que o necessário encarcerado, a exigibilidade da multa pelo Estado, soa como “bis in idem”.

De outro lado, em que pese o trânsito em julgado da sentença, releva ponderar que o crime de ameaça, tipificado no artigo 147 do Código Penal, é apenado com pena de detenção ou multa, ou seja, é tipo misto alternativo, não cumulativo.

Portanto, haveria uma incoerência da sentença, que além da pena privativa de liberdade, cumulou uma sanção pecuniária, passível de reforma.

Com tais argumentos, entendo possível – e no presente caso necessário – aplicar-se a detração tanto sobre a pena privativa de liberdade quanto sobre a pena pecuniária, com a consequente declaração de extinção das penas, ante seu integral cumprimento.

Finalmente, insta observar que, à par da extinção da pena, não se prescinde da regular expedição de guia de recolhimento e lançamento do nome do réu no rol dos culpados, com as consequências penais e extrapenais correlatas.