Parecer acerca das competências policiais e de fiscalização de trânsito das Guardas Municipais.
Juliano de Camargo
Bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Público, Assistente Jurídico do MPSP
1. Da fiscalização de trânsito e uso de giroflex
A Constituição Federal
disciplina as atribuições das guardas municipais, conforme artigo 144, §8º:
“§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas
municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme
dispuser a lei.”
De outro lado, como ente
federativo, o Município, dentro de suas competências político-administrativas,
deve legislar aquelas matérias de peculiar interesse, predominantemente local
(art. 30, I, CF).
Interesse local não
significa interesse exclusivo, podendo ser reflexamente interesse do Estado e
da União, tal qual a segurança pública. As peculiaridades de cada Município
definirão suas necessidades próprias.
Nesse passo, o trânsito e
sua regulação é assunto de interesse social e peculiar de cada Município. Se é
de competência da União legislar sobre trânsito (art. 22, XI, CF), também é de
interesse do Município – daí sua competência – para dispor sobre tais matérias
nas vias municipais, inclusive sobre fiscalização.
E corrobora esse
entendimento a previsão do artigo 24 do Código de Trânsito Brasileiro – Lei
9.503/1997 –, do qual destaca-se:
“Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos
Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no
âmbito de suas atribuições;
(...)
V - estabelecer, em conjunto com os órgãos de polícia ostensiva de
trânsito, as diretrizes para o policiamento ostensivo de trânsito;
VI - executar a fiscalização de
trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por
infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no
exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;
VII - aplicar as penalidades de
advertência por escrito e multa, por infrações de circulação,
estacionamento e parada previstas neste Código, notificando os infratores e
arrecadando as multas que aplicar;
VIII - fiscalizar, autuar e
aplicar as penalidades e medidas administrativas cabíveis relativas a
infrações por excesso de peso, dimensões e lotação dos veículos, bem como
notificar e arrecadar as multas que aplicar;”
É um múnus municipal, determinado pelo Código de
Trânsito Brasileiro, a fiscalização de trânsito, o que implica a necessidade de
o Município se adequar e se estruturar, integrando-se ao Sistema Nacional de
Trânsito (art. 24, §2º, CTB), regulado pelo Contran – Conselho Nacional de
Trânsito.
Nesse sentido, o Conselho
Nacional de Trânsito editou a Resolução nº 166/2004 dispondo:
“Item
2.1.4.1: A integração do município ao Sistema Nacional de Trânsito independe de seu tamanho, receitas e quadro de pessoal. É exigida a criação
do órgão de trânsito e da Junta Administrativa de Recursos de Infrações - JARI,
à qual cabe julgar os recursos interpostos pelos presumidos infratores."
Não há condicionamento, pois, dessa integração, à existência
de pessoal especializado. Poderia, assim, o Município, dentro de suas
estruturas já existentes, destacar servidor civil para fins de policiamento de
trânsito, cujas atribuições são próprias, com previsão legal específica para
tanto.
Deve, portanto, de acordo
com o princípio da legalidade administrativa, ser devidamente regulamentada a
atuação das guardas municipais e dos agentes de trânsito.
A propósito, há
entendimentos afirmando a incompetência das guardas municipais para atuarem na
fiscalização de trânsito, inclusive com pareceres do Departamento Nacional de
Trânsito - Denatran e Conselho Estadual de Trânsito – Cetran, e decisões
judiciais em Mandado de Segurança, que abaixo colaciono:
Conselho
Estadual de Trânsito – Deliberação 1, de 24-6-2005-CETRAN:
“Não têm
competência os integrantes da Guarda Municipal para o exercício da função de
agente de trânsito, por força do princípio específico do art. 144, § 8º da
Constituição Federal de 1988, devendo cessar sua atividade nesse mister, sem
prejuízo dos atos praticados anteriormente, em virtude do entendimento então
tolerado pelo Denatran."
TJSP, 9ª Vara da Fazenda Pública/SP, MS nº
583.53.2005.022171-4, MMa. Juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti, j.
27.12.2005:
“As Guardas Municipais possuem atribuições restritas à proteção dos bens,
serviços e instalações do Município, conforme disposição expressão do art. 144,
§ 8º da Constituição Federal. Não possuem competência para executar a
fiscalização do trânsito, tampouco atuar e aplicar as medidas cabíveis em razão
de infrações previstas no Código de Trânsito, ou seja, não podem exercer os
poderes de Polícia de Trânsito. Constatada a incompetência da Guarda Municipal
para o exercício do poder de polícia de trânsito, conforme o elenco taxativo do
art. 144 da Constituição Federal, não se reveste de ilegalidade ou abusividade
o ato da autoridade impetrada. Ante o exposto, DENEGO A SEGURANÇA, casso a
liminar anteriormente concedida e julgo extinto o processo com fundamento no
inciso I do art. 269 do Código de Processo Civil.” – Pendente recurso de apelação.
TJSP, 1ª Vara da Fazenda Pública/SP, MS nº 583.53.2006.107381-7, MM. Juiz
Ronaldo Frigini, j. 31.05.2006: “De fato, não se exige, para
exercer fiscalização de trânsito, poder de polícia ostensiva ou judiciária, que
é indubitavelmente vedada à Guarda Municipal, como assevera Alexandre de Moraes
(Direito Constitucional, Atlas, São Paulo, 2001, p. 644). Para tanto, basta o
exercício da chamada polícia administrativa. Portanto, a questão é saber se a
limitação constitucional apenas se refere à polícia administrativa ou também à
judiciária. Em primeiro lugar, diga-se desde logo que não é uma divisão
absolutamente certa ou estanque essa entre polícia administrativa e judiciária,
e não pode, por isso, ser levada a extremos. A questão, na verdade, é saber se
a vedação constitucional à atividade da Guarda Municipal importa em vedar a ela
o exercício da polícia administrativa, tida como aquela destinada a ‘impor à
livre ação dos particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade’ (cf.
Alexandre de Moraes, op. cit, p. 643), em que indubitavelmente se insere a
polícia de trânsito. Ademais, interessa notar que a polícia de trânsito pode
ser atividade exercida por qualquer servidor civil, estatutário ou celetista, ou
ainda policial militar designado para tanto pela autoridade de trânsito, como
permite o artigo 280, § 4º, do CTB. A conclusão, entretanto, é a de que a
atribuição de competências à guarda municipal é mais restrita do que a
possibilidade de atribuir competência a servidor para fiscalização de trânsito.
A restrição, de fato, é constitucional, e hierarquicamente prevalece sobre o
permissivo infraconstitucional. Assim, patenteia-se que a competência da guarda
municipal é efetivamente restrita à vigilância sobre bens municipais. E
vigilância sobre bens municipais não inclui a fiscalização de trânsito, sendo
coisa bem diversa, pese a tentativa de asseverar o contrário feita na inicial.
Assim, a ordem deve ser denegada, pois não se entrevê ilegalidade na restrição
da autoridade impetrada. Pelo exposto, denego a segurança, cassada a liminar.” – Pendente recurso de apelação.
No caso do Município de Itu,
verifica-se que a Lei Municipal nº 2827/1986 (fls. 58/61), que instituiu a
Guarda Municipal de Itu, definiu no seu artigo 1º as atribuições desse órgão,
entre elas a “fiscalização, controle e
policiamento do trânsito dentro do território do município de Itu” e a “aplicação de multas por infração de
trânsito” (alíneas “a” e “b”). Tais atribuições foram mantidas no regulamento
específico – Decreto Municipal nº 2212/1986 (fls. 82/93).
Esses diplomas legais,
anteriores à Constituição Federal de 1988, sofreram modificações até que em
1999 foi editada a Lei Municipal nº 4332, que dispôs sobre a estrutura
administrativa da Guarda Civil Municipal (fls. 63/78).
Todavia, essa Lei também definiu
como atribuição da GM:
“Art. 1º, inciso II – Executar, como agente fiscalizadora de
trânsito, a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas
administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento, parada,
excesso de peso, dimensões e lotação de veículos, previstas no Código de
Trânsito Brasileiro;”
Percebe-se que a legislação
municipal até então se encontrava em dissonância com a regulamentação nacional,
situação que persiste, ao menos no plano normativo.
Na prática, existe no quadro
funcional da administração pública municipal o cargo de agente de trânsito, mas
atualmente composto por guardas municipais designados para atuação exclusiva
como “agentes da autoridade de trânsito” (portarias juntadas aos autos).
Tais designações
fundamentaram-se no artigo 280, §4º, da Lei nº 9.503/1997 – Código de Trânsito
Brasileiro, in verbis:
“§ 4º O agente da autoridade de
trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil,
estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade
de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência.”
Ora, o texto é claro ao
dispor que “policiais militares”
poderão ser designados para a fiscalização de trânsito, com competência para
aplicação de infrações e multas, e não o
“guarda municipal”. Este, apesar de servidor municipal, seja estatutário ou
celetista, têm suas funções específicas, disciplinadas desde nível
constitucional, configurando-se qualquer desvio de atribuição uma afronta à
Constituição Federal.
Outrossim, é relevante
destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2011,
reconheceu a existência de repercussão nesse tema, quando do julgamento do
Recurso Extraordinário nº 637.539/RJ, de relatoria do Ministro Marco Aurélio,
assim ementado:
“PODER DE POLÍCIA – IMPOSIÇÃO DE MULTA DE TRÂNSITO – GUARDA
MUNICIPAL – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a
controvérsia acerca da possibilidade de aplicação de multa de trânsito por
guarda municipal, tendo em vista o disposto no artigo 144, § 8º, da
Constituição da República, cujo rol especifica as funções às quais se destinam
tais servidores públicos.” (STF, Rep. Geral no RE 637.539/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio,
j. 08/09/2011).
Infelizmente, após essa
decisão, antes que o mérito fosse apreciado, o então recorrente, Município do
Rio de Janeiro, desistiu do recurso, que foi homologado em 13 de outubro de
2011.
Ficou, portanto, sem se
pronunciar nossa Suprema Corte, pairando, ainda, a grande controvérsia a
respeito das competências das guardas municipais, com decisões judiciais em
ambos sentidos.
De qualquer maneira, tendo
por norte a supremacia do interesse
público, diante das circunstâncias fáticas do Município de Itu, é inviável, até mesmo temeroso, destituir
todos os atuais guardas municipais de suas atribuições de fiscalização de
trânsito, colocando em risco a segurança dos cidadãos.
Revela-se prudente,
portanto, a premente necessidade de realização de concurso público
específico para provimento dos cargos de agentes de trânsito, para
paulatina, mas constante, substituição dos guardas por servidores com função
determinada e, de outro lado, liberando tais guardas municipais para suas
atribuições natas.
Via de consequência, não há
que se falar em irregularidade no uso de sinalização específica nos veículos da
guarda – giroflex e sirene –, indicando preferência em situações de urgência e
emergência, de acordo com o art. 29 do Código de Trânsito Brasileiro.
Dessa forma, é necessário que o Município providencie, em tempo
adequado, realização de concurso público para provimento dos cargos de agentes
de fiscalização de trânsito.
2. Do porte de arma
No tocante ao uso de armas
de fogo pelos agentes da guarda municipal, há que se observar, também dentro
das peculiaridades locais, a existência de salvo conduto expedido pelo Poder
Judiciário, em procedimento judicial especialmente instaurado.
A decisão proferida nos
autos do Habeas Corpus nº 857/2009 (fls. 44/49) foi, inclusive, confirmada pelo
E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em reexame necessário (fls.
50/53).
Entretanto – e isto é importante
frisar –, a ordem judicial concedida abarca a utilização de armas de fogo exclusivamente pelos guardas municipais,
ou seja, aqueles servidores municipais incumbidos de tais atribuições. A
contrário senso, é inadmissível que
agentes de trânsito portem armas de fogo, ainda que tal função esteja sendo
exercida por guardas municipais designados.
Com efeito, considerando que
as portarias juntadas aos autos, que designam “com exclusividade” os servidores
ali relacionados para atuação como “agentes da autoridade de trânsito”, não há
mais que se falar no exercício cumulativo da atividade de guarda municipal, a
necessitar a utilização de uma arma de fogo.
Portanto, nessa esteira,
também recomenda-se que os servidores municipais, enquanto no exercício de atividades
específicas de agentes de trânsito, não portem qualquer tipo de arma de fogo.
3. Da atividade de policiamento e realização de abordagens e
flagrantes
Quanto à atividade típica de
policiamento (não se confundindo com o poder de polícia administrativa),
deve-se buscar embasamento também no texto constitucional.
O artigo 144 da Constituição
Federal dispõe sobre os órgãos incumbidos da segurança pública, entre eles as
polícias civis e militares, excluídas as guardas municipais (§8º), cuja
atribuição é proteger os bens, serviços e instalações públicas municipais.
Aliás, leciona José Afonso
da Silva que:
“Os constituintes recusaram várias propostas no sentido de
instituir alguma forma de polícia municipal. Com isso, os Municípios não
ficaram com nenhuma específica responsabilidade pela segurança pública. Ficaram
com a responsabilidade por ela na medida em que sendo entidade estatal não
podem eximir-se de ajudar os Estados no cumprimento dessa função”
E qualquer desvio das
funções ou extrapolação dos meios empregados deverá ensejar, por certo, as
medidas administrativas, civis e criminais adequadas.
Com efeito, José Afonso da
Silva também esclarece, referindo-se à proteção de bens e serviços públicos:
“Aí certamente está uma área que é de segurança: assegurar a
incolumidade do patrimônio municipal, que envolve bens de uso comum do povo,
bens de uso especial e bens patrimoniais, mas não é de polícia ostensiva, que é
função exclusiva da Polícia Militar.”
Contudo, a vedação ao
policiamento ostensivo das guardas municipais nãos lhes retira competência
preventiva e restaurativa da ordem pública. Esta proteção demanda atitude pró-ativa, e não inerte. Não
por menos, é parte integrante e colaborativa da segurança pública, relembrando,
dentro dos peculiares interesses locais.
Portanto, é legal e regular
o patrulhamento das guardas com vistas a coibir danos ao patrimônio público e
violações aos serviços públicos, dentro dos limites de suas atribuições,
conforme dispuser a lei.
A questão de abordagens de
suspeitos é um exercício do dever
funcional de proteção da ordem pública, aí incluído, se necessário, o uso
de força e dos recursos necessário para coibir práticas criminosas, entre estes
a realização de buscas pessoais e apreensão de armas e objetos ilícitos, nos
limites legais.
Seria desproporcional – e,
ademais, um descuido com a segurança da sociedade – exigir-se do agente da
guarda municipal, diante de atitude suspeita, uma postura de inércia,
limitando-se a comunicar os fatos à autoridade de polícia ostensiva.
CONCLUSÕES
Diante dos fundamentos aqui
trazidos, suficiente para manter a regularidade das atribuições das Guardas Municipais as seguintes recomendações:
a) realizar concurso público para provimento dos cargos específicos de agentes de trânsito;
b) com a nomeação e posse
desses novos servidores concursados, restituir às funções originais os guardas
municipais atualmente designados para a fiscalização do trânsito;
c) zelar para que os agentes
de trânsito, quando no exercício dessa atribuição determinada, não portem
qualquer tipo de arma de fogo, ainda que se trate de guarda civil designado
cumulando funções.
Por fim, a inércia da
Administração Pública na observância das recomendações poderá ensejar diligências para apuração de responsabilidades, bem como eventual ajuizamento
de ação civil pública.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed., rev. e atual.
São Paulo, Malheiros: 2004, p. 761/762.